quinta-feira, 31 de agosto de 2006

É a loucura.

É, ela mesma: a loucura.
Desce a garganta, o licor agridoce
Olhar pássaros e correr dedos nas grades
Incerteza se é teto ou é céu
Som seco de harpa tocada em fim de tarde
Calor permeando véus, vidas e cidades
Ela mesma, a loucura que mora debaixo das unhas
Num espasmo respirar ao contrário
Fechar as mãos sobre os tecidos celestes
A boca seca engolindo em êxtase
Um sonho virado do avesso
É ela, a loucura e o começo.
A irmã, a amante e a filha
Arranhão no rosto branco e penas de asas
Cair no abismo e engolir o calor do vermelho
É ela. Ela, a loucura,
Vomitando verdade nas costas do tempo
Estômago em chamas, olhar de vidro
Beijar a própria boca
Olhando o espelho.

sábado, 12 de agosto de 2006

Hora do chá

No jardim há uma pequena mesa branca, de tampo redondo, com duas cadeiras. A mesa fica em um local sombreado pelas árvores, de onde se pode ver os campos ao longe, salpicados de flores selvagens. Hoje parece ser primavera... mas quem sabe ao certo? Gostaria de que a mesa fosse maior, de que fosse preciso trazer mais cadeiras. Porém não adianta abrir muitos lugares à mesa, pois não há ninguém para ocupá-los.
Eu me sento numa das cadeiras, ajeito o tecido leve do meu vestido lilás. Minha convidada vem se aproximando, sempre pontual. No centro da mesa repousa o bule, ladeado por duas xícaras e um açucareiro. Arrumo as xicaras e começo a servir-me de chá. Através do vapor vejo a expressão no rosto da minha convidada, aquele meio sorriso que nunca abandona seu rosto.
E me aproximo a passos lentos, ainda não sei o que estou fazendo aqui, mas como em tantas outras ocasiões, eu vim de qualquer modo. Ela está usando um vestido, parece quase formal. Claro, por que não? Eu vim de jeans e camiseta de banda de rock. Claro, claro... Ela se serve de chá e olha para mim por um instante.
- O meu pode ser on the rocks...
- Nós não bebemos, você sabe disso.
- Acho que deveríamos beber sim. E meter os pés pelas mãos às vezes, fazer coisas sem planejar, até quebrar a cara de vez em quando.
- Já quebramos a cara mesmo sem fazer esse tipo de coisa.
- Touché!
- Ainda bem que você não quer levar essa discussão adiante mais uma vez.
- Não hoje.
As duas bebem o chá vagarosamente, em silêncio por um instante. De um lado, cabelos castanhos avermelhados puxados para trás, presos por um enfeite prateado em forma de pequeno laço, cravejado de strass e com um pingente de pérola; no rosto os óculos retangulares de cantos arredondados, armação leve de metal. Do outro lado, os cabelos longos e lisos em tom vermelho forte caem sobre os ombros e ao lado do rosto, derramando-se até o meio das costas; a face coberta pela maquiagem discreta e meticulosa, nos olhos discretas lentes de contato transparentes, que até causam irritação às vezes, mas nunca dão lugar aos óculos.
- Tem alguma sugestão para resolvermos aquele problema que tem tirado nossa calma?
- Um soco no estômago e um chute no saco.
- Eu estava pensando em algo mais diplomático, como uma longa conversa sincera, firme e decisiva.
- Já não fizemos isso antes? Várias vezes?
- Dessa vez seria definitivo.
- Das outras também era. Agora o soco no estômago e uma verdades cuspidas com ácido cairiam muito bem.
- Isso não parece ser exatamente uma solução.
- Algumas coisas não têm solução. Mas têm fim. Não dá para ter um final feliz, então que pelo menos seja um final brutalmente sincero.
- Desse jeito você acaba assustando as pessoas.
- Eu sou um peixe de águas muito profundas, você sabe disso. Se eu subir à superfície, com certeza vou explodir.
Eu encaro meu rosto do outro lado da mesa. O chá acabou. A discussão acabou. A decisão será tomada num dos andares superiores, lá onde se pode ouvir tudo o que é dito em qualquer parte deste lugar, mesmo que inconscientes desse fato. Eu vou embora em direções diferentes, com idéias que nem sempre se completam, com desejos que se confundem, e temperamentos que se revezam.
O momento de reflexão passou, com açúcar e limão. A valsa de todos os eus continua infinitamente... rodando e rodando...